segredos secretados
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Chão

De repente não havia mais chão
Melhor não saber onde pisa
Melhor esperar de tudo
Pra que chão se não há certeza de que matéria somos feitos?

Vamos cantar aos tecelões do destino
Deixá-los surdos
Fazê-los errar o fio
Errar e deixar-nos cair o novelo
Puxar o fio e se enredar ao tempo

Vamos esperar a loucura
Como quem espera um presente
E decidir o pra sempre
Que o agora já é nosso
De repente não havia mais chão

...

Melhor assim


Por Rodrigo Brod * 14:38 * 11.3.04

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Gritos

Há tempos em que não pode-se dizer que o tempo tenha passado. É como viver algo entre o eterno e o imediato, entre o puro e o impuro, entre o abstrato e o concreto. Nada mais é tão certo como deveria ser. E o errado tem uma beleza tão fora do comum que chega a assustar.
Procurando em suas gavetas os papéis que jurara ter queimado, junto a fotos antigas de pessoas que matara tentando esquecer, procurando memórias que não passam de meros traços de amnésia, era difícil encontrar algo, tão pouco a si mesmo. O canivete deitava-se junto a declaração do Imposto de Renda do ano passado e parecia se sentir confortável, apesar da sujeira do sangue coagulado de meses atrás. Os papéis todos sobrepostos uns aos outros em uma ordenada desordem de folhas em branco. A isso juntaram-se duas lágrimas. Duas guerreiras separadas da solidão apenas pela simples existência uma da outra. Dois lapsos de sentimento de um tempo em que ainda era possível sonhar. Escorregaram leve e lentamente por uma das folhas e foram se encontrar umedecendo o sangue morto do canivete. E o sangue se tornou vivo novamente. Tão vivo que parecia ter sido naquele momento que ele cortara os pulsos. A pureza branca dos papéis manchou-se do grito cortante da lâmina e pôde-se ouvir um choro perturbador que, somado aos uivos dos vira-latas da rua ao lado e ao apito intermitente do vigilante que se prestava à segurança da vizinhança, regia uma sinfonia ironicamente sinistra.
Os sustos se tornaram constantes. Assustar-se com os próprios passos, com a própria sombra, com o próprio rosto no espelho rachado da sala. Poderia jurar ter ouvido um tiro estourando a própria cabeça... e o grito que atirou ao ar nesse instante superou as barreiras da realidade, exteriorizou o pesadelo ao mesmo tempo em que encravava ainda mais todos os seus medos e suas dores. As duas mãos foram trêmulas à cabeça, os joelhos foram certos ao chão. Outro grito sentiu ser formado na garganta. Não pôde segurá-lo. O pavor aumentava cada vez mais, num aperto que fazia do coração uma fruta prestes a virar suco. Sentou-se enquanto pressionava a cabeça entre os joelhos já machucados pela queda brusca no carpete velho do quarto. Outro grito, agora suplicando: "Salvem-me! Por favor..."
Os relógios pareciam mais bússolas que relógios. Alguns precisamente estacionados em uma hora ou outra, outros oscilando sem parar. A noite se esvaia e os poucos raios de sol que venciam as frestas da janela caiam em cheio sobre seus olhos dando-lhe uma imagem dolorida e nebulosa do que seria a manhã daquele dia. Era ter a vida e também a própria morte nas mãos sem se dar conta do poder que isso representava. Uma criança brincando com os sentimentos como brinca com seus joguinhos de montar.
Quando sentiu que outro grito se formava em sua garganta e notou que não podia fazer nada, correu com todo o desespero acumulado e se jogou contra a parede. O pôster antigo com a foto da Janis Joplin caiu sobre ele e foi jogado longe com um coice. A aperto que sentia no peito estava sufocando-o, precisava de algo e não fazia a mínima idéia do quê.
Desceu as escadas e, enlouquecido, passou a vasculhar os armários um a um, sem achar nada. As gavetas também estavam vazias e a dispensa já havia se tornado habitat de aranhas e cupins. Continuou a procurar. Procurar algo que talvez nem existisse, nem estivesse ao seu alcance.
Há um bom tempo já vinha se acostumando com esse tipo de sensação dolorosa. Uma dor que parecia preenchê-lo ao invés de machucá-lo, uma dor caprichosa que fazia da loucura uma ótima sensação. Sentia-se vivo ao menos. Um estado de insana consciência em que podia-se saber exatamente o que estava fazendo, só que sem prestar atenção ou realmente avaliar os atos em si.
A busca parecia estar longe de ter um final, e se tivesse, não seria feliz.
O sol voltava novamente a se esconder por entre os prédios da cidade e a noite aparecia triunfante como sempre. Estranha era a noite, levava consigo a luz do dia e tornava a loucura muito mais densa e perigosa. Parecia esperar gratidão ao olhar o hospício lá do alto com suas estrelas mortas. Louca é a noite, o mundo é apenas insano...
Deitado no chão, acompanhando a dança de cores que o crepúsculo projetava na parede oposta a da janela do seu quarto, com olhos de um zumbi fascinado pela beleza sombria de um anoitecer. A cidade continuava viva, com seus veículos humanos e mecânicos, suas vozes, seus gritos, sua luz. Por dentro só um imenso vazio, uma vazia solidão, um pavoroso abandono de si mesmo. Mais gritos foram se formando em sua garganta. Cada vez mais era difícil suportá-los. Arremessou seu corpo em direção à gaveta ainda aberta, cheia de papéis manchados de um sangue real demais, vermelho demais, vivo demais. Não tinha mais forças para se levantar, permaneceu ali, estático, por alguns momentos de eternidade, apoiado na lembrança de sonhos que não ousaria mais sonhar. O grito finalmente ecoou na lâmina afiada do canivete, onde o sangue ainda se fazia muito vivo, e com o grito se tornou mais vivo ainda...
... e um último grito saiu apertado, rouco, surdo, assustadoramente mudo... de lábios que beijam a morte como um beijo de boa-noite e que agora se umedecem no sangue gelado de um corpo que já havia deixado de viver há muito tempo atrás... quando deixara de sonhar.


Por Rodrigo Brod * 14:30 *

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O jogo de dados

Jogaram o dado outra vez. E o dado girou. Girou pra burro em cima da mesa colocada minuciosamente no centro da sala.
- Ai, caralho! Não me assusta!
O soco veio seco à mesa e o dado parou.
Cinco.
Cinco também eram os presentes.
Ela se levantou, quase mandando à merda tudo aquilo. Os outros só olharam.
Procurou uma porta. Trancada. Os outros riram. Ela olhou de volta e só encontrou hipocrisia. Sentou-se à mesa e passou a olhar a janela. Daquele jeito fixo, chapado, pensando em que raio de deserto eles tinham vindo se enfiar.
Sua irmã chamou de volta sua atenção com um "voltemos ao jogo" providencial, daquele jeito polido que Ela nunca conseguiria ter.
Marcos lembrou que era a sua vez e pegou o dado. Jogou e o puto girou mais ainda que da outa vez. Parou. Sozinho. Sem soco.
Quatro. Um a menos.
Ela ficou em pé. Tentou esmurrar a janela mas sua irmã a impediu.
- Merda Clara! Deixa eu tentar!
Plínio pegou-a pelos braços até o jeito chapado tomar o lugar da ira, num joguinho de "médico e monstro", só que sem o lado bonzinho. Marcos acendeu um cigarro e jogou a fumaça em direção à janela como se estivesse aberta. Pedro deu aquele sorrisinho esquisito com o canto da boca e apontou outro cigarro para o Marcos acender. Clara chorava. Plínio, quando sentiu que o monstro tinha ido embora, relaxou os braços e deixou Ela se soltar.
Trapo humano, braços marcados, roxos. Cabelo puído e olhos fundos.
Plínio deitou no chão e bocejou.
- Porra. Apaga essa merda.
Ninguém deu bola e ele virou de bruços, se encolheu e foi pegando no sono.
Ela esfregava os braços se balançando devagar. Cantava, baixinho, um mantra ou algo do tipo. E o silêncio deixava o canto muito mais alto do que deveria ser.
Pedro pegou o dado e jogou em direção a Ela. Como sempre, o dado girou e continuou estupidamente girando. Ela olhava. Parecia um abutre magro, com fome, desses de cartum.
E enfiou o dado goela abaixo.
- Não! Tira isso da boca.
Clara correu até Ela, que já se deitava no chão, forçando as costas contra a parede, e ria, epilética.
Pedro ficou em pé e começou a gritar:
- Salve! Salve o riso! O riso dessa paranóia desgraçada que nos enfiou nesse buraco.
Ela se levantou com dificuldade e agarrou Pedro. Deu-lhe um beijo de língua e os dois caíram no chão. Pedro se afastou, ainda rindo e Ela ficou ali, de joelhos olhando para o chão.
Colocou as duas mãos na frente da boca mas não pôde segurar o vômito que já escorria entre seus dedos. Virou-se para a parede e caiu dura, com o dado sujo exposto na mão aberta.
Clara, que já chorava fazia alguns minutos, começou o soluçar. Correu em direção à irmã e a abraçou. Chorou mais ainda e começou a ter espasmos ao lado de um transfigurado Pedro que ainda não parara de rir.
Marcos, que já não agüentava mais aquilo, levantou Pedro e começou a esmurrá-lo para tentar conter o seu riso ensandecido. Pedro continuou rindo, tentou balbuciar alguma coisa, mas sua boca já estava cheia de sangue. E ria mais. Mais e sem parar. Marcos então arremessou o rosto de Pedro contra a parede. Funcionou.
Plínio continuava dormindo. Marcos deitou ao seu lado olhando para o alto como se existisse algo muito interessante no teto. Clara já estava mais calma, mas ainda chorava. Foi até Marcos e balbuciou algo em seu ouvido, mas ele tinha decidido não ouvir mais nada. Então Clara voltou-se até sua irmã, abriu sua mão e pegou o dado sujo para lavá-lo no banheiro. Nesse meio tempo Plínio acordou, olhou em volta e como todos estavam deitados, não achou nada fora do normal. Ouviu o barulho da torneira no banheiro e olhando em volta deduziu que Clara estivesse lá. Clara saiu do banheiro cabisbaixa, andou em direção a Plínio, entregou-lhe o dado limpo e seguiu novamente em direção à sua irmã que ainda estava deitada. Plínio começou a girar o dado em sua mão e percebeu que o número seis tinha sumido. Clara tentava reanimar a irmã, mas começava a se desesperar ao perceber que o esforço era em vão. Plínio foi até as duas e tocou o pulso da desfalecida. Tocou e esperou. Esperou até que não sentisse pulsação alguma. Mas esperou mais e continuou esperando como se do nada aquele coração voltasse a bater. Mas não. Largou o pulso frio e se levantou desolado, tocou o ombro de Clara e voltou a se sentar. No caminho pegou um cigarro do maço de Marcos para acender depois. Clara ficou ali, de joelhos, olhando a irmã, sem acreditar. Olhou de volta para Plínio buscando uma resposta, um auxílio, um olhar de amparo, qualquer coisa.
Ele acendeu o cigarro.
Clara, desesperada, gritou. Mas não um grito, pariu uma gargalhada. Tirou Marcos do transe e Pedro do desmaio. Se abraçou à sua irmã e começou a chorar e rir ao mesmo tempo em um belíssimo espetáculo de loucura.
Ninguém podia fazer nada, nem por eles mesmos, menos ainda pelos outros.
Marcos foi sentar-se à mesa ao lado de Plínio. Pedro foi em seguida. Plínio girava o dado entre os dedos. Clara se levantou e, como se nada houvesse acontecido, foi sentar-se com os outros.
O tempo passou. Segundos, minutos e talvez até horas. Todos se olharam e Plínio atirou o dado pela última vez. Ele girou e girou e caprichosamente continuou girando até parar bem no centro da mesa. Quatro.
Quatro também eram os presentes.


Por Rodrigo Brod * 17:24 * 8.3.04

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cúmplices:
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